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Interpretações, Significados e Análises de Letras de Músicas

Sugestão do Leitor: Mais do Mesmo

     Há um bom tempo, o Matheus Macabu, leitor do blog, me sugeriu interpretar Mais do Mesmo. Foi uma sugestão interessante pois, apesar de ter sido exatamente essa música que me fez criar o blog, nunca tinha me passado pela cabeça analisá-la aqui.
     Então, vamos lá!
     Acho que muita gente já deve ter percebido que essa música demonstra o diálogo entre dois garotos. Um deles é o "menino branco". Isso nos faz subentender que o outro garoto é negro, ou pardo, ou amarelo, ou qualquer outra coisa, mas não é branco, visto que destaca essa característica no outro, de modo a diferenciá-lo.

     Para um diálogo ocorrer, além de duas pessoas ou mais, precisamos de um veículo, de um cenário. O veículo é a fala, o cenário é um morro. O menino branco chega ao morro e dá de cara com o outro garoto. Desenrola-se, então, a conversa.


Garoto do Morro: Ei, menino branco, o que é que você faz aqui, subindo o morro pra tentar se divertir? Mas já disse que não tem, e você ainda quer mais!
     O interessante desta fala é que percebamos que o Garoto do Morro não quer o Menino Branco por ali. Notamos também que o Menino Branco busca algum tipo de diversão. Pensem bem: por qual motivo um menino branco estaria subindo o morro, uma favela, em plenos anos 80 (década em que a música veio ao público)? Que tipo de diversão ele teria ali?

Menino Branco: Por que você não me deixa em paz? Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim. E agora você quer que eu fique assim, igual a você?
     O que podemos extrair daqui é que o Menino Branco sente-se deslocado de sua vida. Tem problemas de pertencimento ao meio em que vive, sente que todos os anos de sua vida não são o que ele queria. E ele está tentando solucionar isso de algum modo.
     Sabemos também que ele não quer ser tão careta quanto o Garoto do Morro, que quer impedi-lo de fazer o que deseja. Não quer ser como aquele cara, favelado, sem o mínimo de cultura, sem o senso de liberdade, que jamais terá um presente ou um futuro decente, que nunca crescerá na vida.

Garoto do Morro: É mesmo, como vou crescer, se nada cresce por aqui? Quem vai tomar conta dos doentes? E quando tem chacina de adolescentes, como é que você se sente? Em vez de luz, tem tiroteio no fim do túnel. Sempre Mais do Mesmo. Não era isso que você queria ouvir?
     O homem é fruto do meio, diria Marx e os adeptos do determinismo alemão. Diria eu que, mais que isso, o homem é fruto dos meios, dos meios que são ou não lhe ofertados. Se sementes não são plantadas, não significa que elas não possam dar bons frutos, mas que não há meio para isso. Se essas mesmas sementes são plantadas num solo deficiente, sem muitos nutrientes e já cansado, talvez desenvolvam, mas não devemos esperar muito delas. Se elas forem, no entanto, plantadas num rico solo, com rotação de culturas, poderemos observar que, com os cuidados necessários, as sementes se transformaram em plantas vistosas, com bons frutos.
     É isso que o Garoto do Morro quer que o Menino Branco saiba. Ele não vai realmente crescer na vida. Ele tem mais o que fazer, ao invés de ir à escola, de estudar filosofia e encontrar soluções para a sociedade. Ele não vai crescer. Como crescer, se nada cresce por aqui?

Menino Branco: Bondade sua me explicar, com tanta determinação, exatamente o que eu sinto, como penso e como sou. Eu realmente não sabia que eu pensava assim. E agora você quer um retrato do país, mas queimaram o filme...
     O Menino Branco, no entanto, sabe que, se o Garoto do Morro se esforçar, pode, sim, crescer. Ele é que não quer. Ele fica o tempo todo montando aquele cenário do país, usando isso como desculpa para não ir à escola quando, na verdade, ele é que não quer isso. Portanto, ironiza toda essa fala e atitude de falso herói que quer mudar o mundo.
     Se ele quer mudar o mundo, não deveria estar tomando conta dos doentes, mas lutando para que não adquirissem doenças. Deveria estar trabalhando com prevenção. Se não faz isso, é porque é burro demais e não entende nada de nada. Se acha que está tudo mais do mesmo, sem mudar nunca, deveria ele mesmo fazer mudança.

Enquanto isso, na enfermaria, todos os doentes estão cantando sucessos populares... (e todos os índios foram mortos).
     E a alma da música não está nem numa fala do Menino Branco, nem numa do Garoto do Morro.
     Dá pra perceber, aqui, o que exatamente o Menino Branco foi fazer no morro. Ele foi tentar ajudar o Garoto do Morro a cuidar dos doentes da enfermaria. E o Garoto do Morro não o quer lá, pois acredita que ele faz parte de um grupo de pessoas que faz mal à sua comunidade. Os dois não têm pensamentos comuns e discutem. Um quer ajudar, o outro não deixa.
     Mas enquanto eles discutem (imaginem: lá na porta da enfermaria), todos os doentes ainda estão lá, e ainda estão acomodados e desligados de todas essas questões sociais. Enquanto isso, os nossos índios estão sendo mortos. Quantas pessoas não morreram até eu terminar de escrever esse texto?
     A lição que podemos tirar disso tudo é que estamos perdendo muito tempo discutindo ideologias. Estamos perdendo tempo demais, perdendo vidas, perdendo sorrisos. Enquanto discutimos ismos e mais ismos, todos perdemos.

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18 comentários:

  1. É, acho que é a primeira que eu achei meio sem a verdade da música.
    Um pouco tiro no escuro, difícil de ter acertado, mas tem suas chances...

    Minha opinião, claro.

    Abraços.

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    1. É engraçado, Guilherme, acho que uma das poucas que tem chance de estar certa.
      Realmente, questão de opinião.
      Beijos!

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    2. concordo guilherme. acho que explorou muito esse lado do branco bonzinho,e do negro que não pode ser alguem. o branco realmente queria drogas,pois ele estivera lá, e o negro só quer em sua comunidade pessoas que querem ajudar,não filhinhos de papai imbecis que só fazem merda. No final das contas nenhum dos dois realmente ajudam. Dan

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    3. Eu achei que o "menino branco" foi ao morro pra usar algum tipo de droga, sei lá ... por quê fala " subindo o morro pra tentar se divertir " [...] " mas já disse que não tem e você ainda quer mais ... " (Opinião)

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  2. Matheus, sabe o que é interessante? Eu escrevi o post e tinha realmente falado da questão do menino ter ido lá procurar por drogas. Mas, por alguma questão, resolvi trocar quando fui publicar. E lá vou eu reescrever tudo.

    Isso pq, enquanto eu escrevo, deixo a música repetindo ao fundo. E a parte "enquanto isso na enfermaria..." ficou me perturbando, de algum modo. Talvez tenha ficado confuso por isso, pq eu não devo ter editado o texto direito, não modifiquei nada da primeira parte, onde eu falava sobre as drogas, apenas cortei. Cortei um parágrafo inteirinho...

    Mas, seguindo essa linha de raciocínio, quando o Garoto do Morro fala "subindo o morro pra tentar se divertir" usa da ironia. Acha que o Menino Branco não está ali pq realmente quer ajudar, mas pq acha divertido ser um voluntário, digamos assim. Você entende o que quero dizer? Acha que o menino é mais uma daquelas pessoas que fazem coisas pq as pessoas vão considerá-lo uma pessoa boa. Não sei se consigo me expressar bem...

    Quanto à sua interpretação, embora pareça que não tenha percebido, acho bem semelhante ao que eu penso sobre a música. Adorei que tenha exposto sua opinião, sua interpretação! Não acho que viajou, não. Aliás, pelo contrário, é bem coerente o que você diz.

    E é bem isso que você diz mesmo, músicas boas são assim. O Renato mesmo disse que devíamos ter cuidado, que as interpretações diriam mais de quem interpreta do que da música...

    Abraços, querido, e obrigada!

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  3. Matheus,

    Trabalhar com músicas internacionais é complicado. Eu não tenho fluência em nenhuma outra língua. Sei um pouco inglês e italiano, mas pouco... Não confio muito nas traduções que vejo por aí. E, mesmo que houvesse traduções boas, a linguagem é outra, as metáforas são complicadas de entender se não se conhece a língua.

    Quanto a outros estilos, eu posso tentar alguma coisa, gosto de muita coisa que difere do rock nacional. Se quiser me nortear...

    Abraços!

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  4. Olá Thamirys!

    Por acaso, eu encontrei esse blog e gostei bastante. Parabéns!

    Como eu tbm gosto dessa música e como interpretações são muito subjetivas, eu resolvi dá a minha versão que difere um pouco da versão de vcs (Matheus e Tamirys). Vamos por partes.

    Para mim a 1º, 2º e 3º estrofes são falas do “Menino do Morro”. Ele apresenta a forma de pensar do “Menino Branco”.

    Na 1º estrofe o “Menino Branco” sobe o morro atrás de drogas e é repreendido pelo “Menino do Morro”: “... já disse que não tem ... por que vc não me deixa em paz?”. Na 2º parte o “Menino do Morro” deixa transparecer que a vida no morro é dura e que ele não pode se dá ao luxo de não ter responsabilidades como o “Menino Branco” que vive em busca de diversão (“Desses 20 anos nenhum foi feito pra mim, e agora vc quer que eu fique assim igual a vc”). Para o Menino do Morro, o “Menino Branco” pensa que no morro nada prospera, que de lá não sairá nada útil. Então, o “Menino do Morro” usa a ironia no 3º verso: “É mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui”. E o “Menino do Morro” prossegue questionando: “Quem vai tomar conta dos doentes?”, é vc, “Menino Branco”, que só pensa em diversão? “E quando tem chacina de adolescentes, como é que vc se sente?” (o “Menino Branco” não se importa).

    Então, depois de expor o modo de pensar do “Menino Branco”, ele resume a idéia central no refrão. De que a visão do “Menino Branco” nada mais é que a repetição (“mais do mesmo”) do discurso vigente que as pessoas do morro não possuem futuro, que não há esperança para elas (“em vez de luz, tem tiroteio no fim do túnel”). E conclui com uma ironia: “Não era isso que vc queria ouvir?”

    Então, a fala do “Menino Branco” que quer dizer exatamente o que ele disse: “Bondade sua me explicar com tanta determinação, exatamente o que eu sinto, como penso e como sou. Eu realmente não sabia que eu pensava assim”.

    E o “Menino do Morro” continua: “E agora vc quer o retrato do país, mas queimaram o filme”. O “Menino do Morro” mostrou como o “Menino Branco” pensa, mas para o “Menino Branco” entender a realidade do nosso país ele vai ter que refletir, pois muitas coisas não são claras/evidentes e muitas coisas foram maquiadas/escondidas.

    Então o “narrador” conclui: “E enquanto isso, na enfermaria: Todos os doentes estão cantando sucessos populares. (e todos os índios foram mortos).” Enquanto em cima do morro alguém é trazido para a realidade (o “Menino Branco”), muitas pessoas ainda vivem alheias às questões sociais e presas aos seus pré-conceitos, essas pessoas são tidas como doentes. E os doentes vivem em seu universo paralelo na enfermaria cantando músicas populares (aqui musicas que não levam a uma reflexão sobre o mundo e seus problemas).

    Abraços,
    SAGI

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    1. Oi, Sagi!

      Muito boa tua interpretação! Fico feliz e agradecida que contribua pro post. Embora nossas interpretações (minha, sua e do Matheus) tenham diferenças quanto aos diálogos, acho que a questão principal é a mesma.

      Obrigada!
      Abraços!
      =D

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  5. Muito boa as interpretações.
    Fico mais com as feitas pelo Matheus e Sagi.
    É bom lembrar que as músicas do Legião nessa época criticavam muito o sistema e a visão das elites em ignorar os fracos. Ouçam "A Dança", "O Reggae", "A fábrica" e outras parecidas e perceberemos como Renato criticava a alienação e egoísmo dos jovens membros dessa elite em sua época frente aos problemas sociais. A questão do playboy drogado que subia o morro pra se divertir pensando só nele, usando o produto traficantes, na maioria jovens como ele, porém sem futuro, como fonte do seu prazer. Um jovem traficante que tenta abrir os olhos do "menino branco" para as mazelas que o cercam, mostrando que o mundo vai além das diversões hedonistas que ele busca. E na enfermaria, está o povo, que, alienado, canta "sucessos populares", em vez de construir uma nação justa e solidária. 30 anos depois parece que nada mudou.

    Abrçs a todos!
    Parabéns pelo Blog!

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  6. fala de drogas... sempre querendo mais... sempre as pessoas te dizendo que você quer... sempre sem espectativa de vida

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  7. Sobre a parte: "enquanto isso na enfermaria todos os doentes estão cantando sucessos populares". Renato quis dizer que enquanto existem problemas sociais e falta de oportunidades nas favelas, e enquanto jovens de classe média estão se perdendo no mundo das drogas e alimentando o trafico, a sociedade continua cega, julgando tudo isso a partir do senso comum. repetindo clichês do tipo bandido bom é bandido morto.

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  8. Bom dia! Adorei ler tantas interpretações,...
    Em minha opinião acredito que o verso "quem vai tomar conta dos doentes" demonstra sim uma preocupação, porem futura acredito que expressa um sonho de se tornar médico, enfermeiro etc. Sendo certo que tal frase vem depois de "É mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui?
    Quem vai tomar conta dos doentes?
    E quando tem chacina de adolescentes
    Como é que você se sente?

    O garoto "negro" expressa sua indignação e crítica pela atitude do "garoto branco" que financia todo o tráfico "como é que você se sente"

    e ainda ao final em minha opinião quando é cantado
    "E enquanto isso, na enfermaria
    Todos os doentes estão cantando sucessos populares.
    (e todos os índios foram mortos)."

    Os doentes cantando sucessos populares representa que nos quartos de hospital existem muito mais vida, alegria é sua identidade e onde ele quer trabalhar "sucesso populares" aproximação com o povo...
    e "todos os índios foram mortos assim como em outras musicas do Renato, representa a perca da inocência a transição entre os sonhos a fantasia de uma infância e os contos de fadas em choque com a realidade do mundo que não dá espaço para toda que esta pureza sobreviva.

    Espero que esteja bom, adorei todos os comentários, estou aberta para discussões sobre esta musica ... Quem sabe juntos possamos entender !

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  9. São três pontos abordados:
    Primeiramente, fica clara a "fissura" pela droga, a insintência por mais drogas (Depêndência Química).
    O questionamento por parte do traficante que quer saber o porque aquele jovem de classe média se droga, já que tem condições de ter qualidade de vida, e por isso, teoricamente deveria cuidar daqueles menos favorecidos enquanto ele vive no morro, não por opção e sim por obra do destino.
    E o uso de drogas para preencher um vazio, ocasionado pela não aceitação do seu eu, por parte do usuário de drogas, que sobe o morro para tentar se divertir.

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  10. Quando tem chacina de adolescentes, como é que você se sente? Acho que se refere aos jovens ricos que procuram por drogas no morro e alimentam financeiramente o crime organizado, enquanto o garoto do morro que não tem oportunidade acaba entrando para o mundo do crime.

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  11. Acredito que na música não haja realmente uma fala atribuída ao menino branco, apesar de no dado momento haver uma interação entre os 2 jovens. Mas todos os versos da música acredito que são integralmente do garoto do morro, como se fosse uma conversa com o ouvinte da música. O menino branco (ou menina, dependendo), são muitos jovens daquela época que curtiam a Legião Urbana, pessoas de classe média à classe média alta, ricos, aqueles que viviam num mundo à parte e que muitas vezes se divertiam às custas do sofrimento daqueles que moram nas favelas, ou eram estudados, estavam na faculdade, e se julgavam superiores ao povo do morro por terem mais instrução. O termo "se divertir", no caso, é muito provável que seja relacionado à compra e consumo de drogas, e o jovem que sobe o morro não está nem aí de fato para a situação do morro, tendo uma visão já definida de que o pessoal do morro está na pior e que os jovens brancos são aqueles que podem ajudar a comunidade, palpitando na vida dos moradores, achando que os favelados podem ser iguais. Entretanto esses playboys só querem encher o saco e subir o morro para comprar mais drogas. E, para esses jovens brancos, seus ideais nas falas são hipocrisias, pois eles já têm uma visão do morro como um ambiente nada favorável, com violência e onde quase nada prospera, onde tem chacinas, como se o local estivesse condenado a sempre ser desse jeito e que os jovens do morro não têm perspectiva alguma e só servissem para serem traficantes que vendem drogas.

    Apesar de subir o morro para se divertir, o jovem branco tem suas ideologias e sua visão de mundo que acreditam ser as corretas. E o jovem do morro faz críticas e ironias sobre essa visão de superioridade do jovem branco. A meu ver, essa ironia fica evidenciada no seguinte verso: "Bondade sua me explicar, com tanta determinação, exatamente o que eu sinto, como eu penso e como sou. Eu realmente não sabia que eu pensava assim." Para terminar a ironia, o jovem do morro fala que o jovem branco quer um relato da situação do país, favorável à narrativa e ideologia do jovem branco, mas a situação é tão deplorável e já denegrida para essa ideologia que nem é preciso descrever muito: o filme já está queimado mesmo. Não há esperança alguma para o morro.

    No último verso, a enfermaria é o Brasil, e os índios são os cidadãos comuns, alheios à essas duas diferentes realidades, vivendo com sensos comuns, sendo explorados e prejudicados pelo sistema e pela disputa entre as ideologias e a verdadeira realidade.

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